quarta-feira, 12 de maio de 2010

VACA VIRGEM

Saí de casa com a missão de comprar uma sandália para minha mãe. Tinha que ser muito confortável, ela tem diabetes e deve evitar de todo modo machucar os pés. Pra quem não sabe, esse probleminha - ela não gosta que chamem de doença - provoca uma grande sensibilidade, à flor da pele mesmo. Tem que usar roupas leves, sapatos confortáveis, enfim, nada que provoque irritação, muito menos ferimentos.
Entrei numa loja decidida a encontrar uma sandália bem macia e gostosinha para ela. Um senhorzinho sorridente mas um tanto atrapalhado me atendeu. Expliquei a ele exatamente o que queria, que minha mãe tem diabetes, etc. etc. e etc.
- Qual o número? - pergunta ele.
- Trinta e quatro - respondo.
- Com esse número só temos para crianças.
- Mas ela é uma senhora e calça 34.
- Não sei se temos nesse número para adultos.
- Se o senhor puder procurar, eu agradeço - haja paciência!
Com um pouquinho de boa vontade ele vasculhou e achou.
- Temos este modelo aqui - o senhorzinho levou-me até a vitrine e me mostrou duas sandálias do tipo que eu queria. Uma era preta, a outra bege.
Pedi a ele que buscasse uma para eu ver de perto e sentir a textura.
Enquanto ele sumia no depósito, saquei o celular e liguei para casa, inquirindo minha mãe sobre a cor de sua preferência. No momento em que falava com ela, o senhorzinho voltou, trazendo consigo uma sandália preta.
- Só tem esta - foi logo dizendo.
- Ah, a senhora prefere a bege? - disse eu ao telefone.
- Diga a ela que foi feita com couro de vaca virgem - diz o homenzinho.
- Mãe, só tem a preta.
- Foi feita com couro de vaca virgem.
- Pode ser a preta, então? Está bem, tchau!
- Couro de vaca virgem, altíssima qualidade - repetia ele, ignorando a existência da sociedade protetora dos animais.
Como nem sempre sou politicamente correta, comprei a sandália, não sem uma certa culpa. Coitada da vaca, além de lhe tirarem o couro, ainda morre virgem - pensei.
Mas que diferença faz pro calçado se a vaca deu ou não? Começo a suspeitar que essa sandália tão fofinha foi feita com a puríssima e honestíssima genitália da vaca. Será? Melhor ocultar da minha mãe esse detalhe sórdido.

(São Luís, abr/2008)

segunda-feira, 3 de maio de 2010

A VIZINHA

Mora na casa ao pegado da casa dos meus pais - minha atual moradia. Trabalha lá há anos, e suas indisfarçáveis rugas me dizem que já passou dos cinquenta. Usa sempre umas minissaias com tops - deixando a barriguinha à mostra - e cabelos curtos pincelados de acaju desbotado. O patrão enviuvou, logo depois faleceu, e agora restam os filhos deste. Moram longe e só vem no Natal, trazendo muitas crianças barulhentas. No resto do ano reina na casa uma calmaria de claustro.
Ela não sai na rua nem pra comprar pão. As amigas se revezam na tarefa de suprir suas necessidades, bancadas pelo salário que ela recebe. Até onde sei, seu quarto comporta as coisas que ela mais precisa: um espelho grande, tv, som, tudo da melhor qualidade.
Com esse pequeno conforto e liberdade, a vizinha leva uma vidinha bem pacata, contrastando com a sua aparência e provavelmente com os seus desejos e sonhos sublimados. Chama-se Arnaldo.
A moça que trabalha na casa dos meus pais refere-se a ele como "a menina". Os dois se dão muito bem, trocam receitas e fofocas doces.
A menina é gente boa, simpática. Carrega um leve e permanente sorriso nos lábios. Quando passo na sua calçada, ela está invariavelmente com a cabeça pra fora do muro, sondando o outro lado. Eu a cumprimento, e ela retribui com um elogio, um gracejo.
Toda a vizinhança a trata com gentileza, apesar dos risinhos furtivos provocados pela figura tragicômica.
Mesmo com toda a tragédia humana, há momentos preciosos de graça, e que são gostosos de comentar. Este fato, por exemplo, é digno de nota.
Minha tia que mora no interior, irmã de minha mãe, está hospedada aqui em casa. As duas são bastante parecidas fisicamente. Ontem a minha tia estava no quintal, quando ela surgiu do outro lado e perguntou, supondo dirigir-se à minha mãe:
- Como vai a senhora, está bem?
Minha tia fez cara de interrogação, mas respondeu, educadamente:
- Tudo bem, e a senhora, tá boa?
Entrou em casa contando que falou com a tal senhora, com a inocência de uma cristã praticante: "Mas que senhora amável", dizia ela, encantada com os bons modos da gentil vizinha. Mesmo após os esclarecimentos (entre sorrisos incontidos), minha tia, na sua ingenuidade interiorana, duvidou e fez pouco da verdadeira identidade da doce pessoa que mora do outro lado do muro. Uma senhora excêntrica, só.

(São Luís, mar/2008)